Está no ar a primeira crônica, de quatro que publicaremos ainda, sobre a cidade Estrutural. As histórias são resultados de uma pesquisa que durou 4 meses, feita de forma coletiva com os moradores da cidade.

Incursão etnográfica: Leila Saraiva, Lucas Miguel e Yuriê Baptista
Análise: Dyarley Viana, Leila Saraiva, e Lucas Miguel
Escrita: Leila Saraiva

Conta-se que os bazares há tempos fazem parte da vida da cidade Estrutural, sendo uma de suas marcas. Ali, se vende todo tipo de produtos, sempre usados: roupas, bijuterias, materiais de construção, eletrodomésticos, fechaduras…Nos bazares de roupa, as araras tomam conta da sala e as roupas são separadas por gênero e idade. Há também algumas mesas, nas quais as peças estão dispostas, aos montes. Sapatos expostos no chão ou em sapateiras. Vez por outra, os produtos se misturam, e encontramos um fogão em meio a vestidos, utensílios domésticos próximos às sapatarias. Os preços são acessíveis e as chamadas bazarzeiras movimentam uma parte importante da economia da cidade. É preciso ter tempo para olhar tudo o que se oferece com a devida atenção. Foi numa sexta-feira que demos uma volta pelos bazares que, nos dias de semana preenchem as lojas, e no domingo se deslocam para a feira, onde a cidade toda se encontra e novos e velhos laços são (re)criados.

Há quem pense que, em tempos de fechamento de lixão, o número de bazares está crescendo; por outro lado, há também quem ressalte que o lixão está relacionado tanto à chegada de mercadorias nos bazares como na possibilidade de sua venda – o lixão era lugar de garimpo das bazarzeiras e, ao mesmo tempo, o movimento de venda nos bazares deve diminuir com seu fechamento. Muitos trabalhadores/as não fazem parte de cooperativas, o que impossibilita sua participação nos galpões onde o lixo passou a ser triado. Além disso, em tempos de crise, a prioridade tende a ser para artigos de primeira necessidade. As hipóteses sobre a relação bazares e lixão são diversas, mas apontam para uma marca da experiência na cidade: desde o seu princípio, a vida econômica da Estrutural está diretamente conectada com a catação, de modo que o impacto do fechamento do lixão possui proporções que ainda não conhecemos.

Os primeiros bazares que visitamos aquele dia estavam na entrada da cidade e estavam reunidos em uma galeria logo na entrada da cidade. Uma galeria é um espaço divido entre várias bazarzeiras (naquele caso, 5), o que diminui os custos com o rateio do aluguel. Não sabemos são os donos dos imóveis que as bazarzeiras alugam, mas, em especial em se tratando da entrada da cidade onde o processo de especulação imobiliária toma forma cada vez mais nítida, a probabilidade é grande de que aqueles prédios não pertençam à moradores/as da Estrutural. A boa localização também significa mais dificuldade para pagar os aluguéis e consequentes brigas entre as próprias bazarzeiras que partilham as galerias.

Naquela galeria havia também outra atmosfera tensa, uma percepção contínua de discriminação contra casais LGBTI. Essa é uma questão dos bazares: há uma grande conexão entre eles e as igrejas, inclusive uma relação econômica, já que muitas mercadorias são doações das igrejas. A conexão das bazarzeiras com cultos mais conservadores muitas vezes torna a convivência com a população LGBTI conflituosa. Os incômodos das bazarzeiras com as presenças não-heteronormativas não são sequer disfarçados.

Há mais formas de obter roupas além das doações das igrejas. Há, por exemplo, os chamados bazares fechados, ou seja, a compra por um preço determinado de uma caixa ou sacola de roupas sem que a bazarzeira saiba exatamente o que tem dentro. Os bazares fechados podem ser um problema, como nos contou D. Pernambucana, a única bazarzeira que nos ofereceu uma conversa mais fluida: não se sabe ao certo a qualidade do que se está comprando.

O bazar de D. Pernambucana já estava um pouco mais distante do circuito da entrada da Estrutural. Antes de chegar nele, passamos por outros tantos nos quais as opções eram vastas, mas a conversa não tanto. O fato de que estávamos em três e de que dois de nós não parecíamos morar na cidade sem dúvida fez crescer a desconfiança em relação às conversas que tentávamos puxar. Pelo menos um vendedor com certeza aumentou os preços de suas mercadorias ao notar-nos forasteiros.

Mas não foi bem assim no Bazar da Pernambucana. Nessa loja, duas mulheres – Ruth e a própria D. Pernambucana, como soubemos em seguida – conversavam sentadas, enquanto atendiam aos clientes. O calor era grande. Havia araras lotadas e também umas tantas caixas ainda fechadas no chão e muitos, muitos brinquedos.    Quando outro cliente se foi e nós continuávamos a olhar as roupas dispostas nas araras, D. Pernambucana e Ruth reafirmaram que ficássemos à vontade, que olhássemos com atenção as roupas. Aproveitamos o ensejo, puxando conversa o que, com alguma dificuldade, dá certo. D. Pernambucana nos conta que não está há tanto tempo com seu bazar, mas é conhecida na feira pela venda de brinquedos.

Elas comentam que os bazares estão aumentando, apesar de já serem uma tradição antiga da cidade. “Porque será que estão aumentando?”, perguntamos, talvez esperando confirmar uma impressão que já tínhamos, a atribuição do aumento dos bazares ao fechamento do lixão, às dificuldades da vida e coisas do gênero. A resposta de D. Pernambucana e D. Ruth, no entanto, vai em outra direção: “as pessoas viram bazarzeiras por que dá dinheiro, ué!” Insistimos na hipótese: “mas a senhora não acha que eles aumentam quando alguns outros empregos diminuem, tipo agora, com o fechamento do lixão…”. “Não, acho que não. Aumenta porque a grana é boa mesmo”. Como é curiosa essa nossa vontade de ver as coisas apenas pelo viés da escassez, enquanto as pessoas afirmam apostar suas fichas, justamente, na prosperidade!

Por outro lado, uma questão segue latente: em relação a que postos de trabalho os bazares se apresentam como sedutores? A Estrutural possui renda per capita de até dois salários mínimos, em contraposição ao Plano Piloto, bem maior que cinco. A escolarização da cidade também é baixa: apenas 0,5% de seus/as moradores/as possuem ensino superior completo (em contraposição a 53,3% no Plano Piloto), 12,4% ensino médio e 4,2% ensino fundamental, além de haver na cidade uma taxa de analfabetismo de 5,8% (a maior taxa entre as RAs estudadas pelo Mapa das Desigualdades). O Plano Piloto, por exemplo, possui taxa de analfabetismo de apenas 0,4%). Os números são duros e, sabemos, tem impacto direto nos postos de trabalho disponíveis para os/as habitantes daquela cidade. Mais ainda se consideramos estarmos diante da cidade proporcionalmente mais negra do DF. Mais ainda se pensarmos nas bazarzeiras: mulheres, em sua maioria. Tratam-se de dois grupos estruturalmente pior remunerados.

Além disso, 75% das pessoas da Estrutural precisam se deslocar para outras RAs para trabalharem – em comparação com apenas 11% na mesma situação no Plano Piloto. Entre os 25% que trabalham e moram na Estrutural, estão também as bazarzeiras, que podem contar com a possibilidade de participar do cotidiano de suas famílias e casas, não gastar tempo com deslocamento cotidiano (ao contrário de 51% da população local, que utiliza transporte coletivo precário para chegar ao seu trabalho). Assim, apesar de informal e sem garantias trabalhistas, os bazares acabam se apresentando como alternativa econômica atraente para as mulheres da cidade.

Ainda em meio às araras e àquelas tantas peças de roupas, D. Pernambucana nos conta: “Tudo aqui é muito ajeitadinho, sabe? Não é porque compram em bazar que as pessoas querem lixo. As pessoas estão atrás de roupas boas, de qualidade e barata. A gente não pode e não vende lixo, não. Até porque, se coloca essas coisas velhas aqui pra venda, depois vão falar mal do meu bazar por aí…”.

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