Incursão Etnográfica: Fábio Wil, Leila Saraiva, Lucas Miguel e Tatiana dos Santos
Análise: Fábio Wil, Leila Saraiva e Lucas Miguel
Escrita: Leila Saraiva
Naquele dia de caminhada pela Estrutural, resolvemos contornar a cidade, passando pela rua paralela à Via Estrutural, uma autoestrada que conecta o centro do Plano Piloto às Regiões Administrativas do Sul do DF. A cidade é nomeada de Estrutural justamente por sua proximidade com essa via. Para muitos/as da comunidade, essa via é considerada uma porteira: no horário da manhã ela se funciona em sentido único em direção ao Plano Piloto e às 17:30, horário que os comércio e empresas estão fechando, a Via funciona exclusivamente para o sentido Ceilândia. A medida foi adotada como uma solução capenga para manejar os grandes engarrafamentos que preenchem aquela rua cotidianamente, mas deixa outras interpretações e sentimentos. Reafirma o lugar a ser ocupado por moradores/as da Estrutural e outras RAS no centro do DF: o de servirem de mão-de-obra e, findo o trabalho, já não serem mais tão queridos assim nas Asas.
Junto ao simbólico, no cotidiano dos moradores da Estrutural, esse sentido único atrapalha a mobilidade. Quando a via fecha, os ônibus de um ou outro sentido deixam de circular, fazendo com que o tempo de descolamento dobre. Em vez de levar meia hora para chegar a uma localidade como a Rodoviária do Plano Piloto, leva-se mais de uma hora por um caminho alternativo. É bom lembrar que 51% da população economicamente ativa da Estrutural utiliza o ônibus para ir ao trabalho e que esse meio de transporte também é utilizado para outros propósitos.
Chamaremos a rua pela qual caminhamos de Contorno, por sugestão de um de nossos etnógrafos, embora não seja esse seu nome oficial. A sugestão deriva dessa rua ser mais uma das bordas da cidade e, em oposição à fronteira com o lixão, encontra-se visível a outros olhos que não os dos/as moradores/as da cidade. Oficialmente, essa área se chama “Setor Especial”.
Logo no início do percurso percebemos que essa área é muito diferente do resto da cidade: os lotes são maiores, e, embora haja também bazares de móveis ou de eletrônicos e muitas igrejas – coisas sempre presentes no restante da cidade – há ali uma porção de oficinas de carros. Essa distribuição de oficinas não parece coincidência: ao lado da Cidade Estrutural está a conhecida “Cidade do Automóvel”, um setor repleto de concessionárias. A cidade do automóvel ocupa o espaço urbano de forma completamente diferente da Cidade Estrutural: feita por e para grandes lojas, com apoio, incentivo e planejamento do governo. Sua construção demonstra para que fins os poderes destinam aquelas áreas, muito próximas ao Plano Piloto. Não são áreas destinadas a prover as pessoas com moradia, em especial se essas pessoas são pobres e negras, como é o caso da população da Estrutural (proporcionalmente a cidade mais negra do DF). O plano é que tais áreas sejam ocupadas com grandes e lucrativas empresas e lojas, e/ou que sirvam à especulação imobiliária. A resistência da comunidade para permanecer em seu local de morada é contínua, e não há uma conversa rápida com qualquer morador dali que deixe de mencionar os tempos de guerra com a Polícia Militar, em 1998, quando o então governo ordenou a remoção dos/as moradores. As mortes e o sangue derramado são uma marca da cidade e das pessoas, que não esquecem as batalhas travadas naquele território.
Hoje em dia, as ameaças de remoção de toda a cidade pela força policial parecem mais improváveis, mas isso não quer dizer que as expulsões cessaram. A especulação imobiliária talvez seja a principal delas, como nos demos conta muitas vezes nesse passeio. Ainda caminhando pela via contorno, vimos que quanto mais nos aproximávamos da Cidade dos Automóveis, maior era a presença de oficinas mecânicas cujos tamanhos e estrutura cresciam progressivamente, demonstrando que seu público-alvo não eram os/as moradores/as da comunidade. Fábio nos conta que ali, algum tempo antes, também era área de moradia. Muitas pessoas foram retiradas daquele local para áreas mais distantes da via e as casas e chácaras deram lugar à empresários ou pessoas com influência política na Estrutural. Não sabemos bem como estará essa área daqui a alguns anos.
Ali bem próximo de onde caminhávamos, se encontra a passarela, utilizada pelos/as moradores/as para atravessar a via Estrutural sem enfrentar o perigo dos carros que ali passam em alta velocidade. A passarela, no entanto, não é considerada segura pelos/as moradores/as da cidade, pois que ocorrem ali assaltos e roubos, talvez também por estar localizada ao lado de uma área com grandes e ociosos espaços, falta de iluminação e excesso de mato. Nesse ponto, apesar dos dados do GDF afirmarem que 97% dos domicílios da Estrutural contam com iluminação pública -coisa que já não corresponde à experiência dos/as moradores/as da cidade – quando a chegada em casa se dá pela Via Estrutural, é no escuro que se desce do ônibus. Além disso, a Estrutural conta com 1 equipamento de segurança, enquanto o Plano Piloto conta com 39 – e a presença da Policia Militar na cidade não é garantia de segurança para a população, muitas vezes discriminada pela corporação.
No decorrer do caminho, chegamos até a ponta extrema da Estrutural, ao lado da região que passou a se chamar Setor Complementar de Indústria e Abastecimento (SCIA), há não muito tempo. O SCIA, na verdade, é uma espécie de região de transição entre a Estrutural e a Cidade do Automóvel e está numa área que também já foi ocupada por moradores/as, ou seja, que já foi Estrutural. Hoje em dia, as diferenças são gritantes entre as duas regiões e andar nessa rua que separa uma área da outra é deparar-se com muitas ambiguidades. Há ainda, outra questão na relação SCIA/Estrutural: os dados de orçamento público das duas regiões são disponibilizados juntos/as, como se os investimentos fossem distribuídos igualmente, embora a diferença inclusive de saneamento básico das duas áreas é evidente.
Continuamos nosso percurso pelo setor de oficinas que, assim como a área especial, tem estabelecimentos que não são acessados pela população local. O contrates entre as edificações é chocante: onde o território é chamado de Estrutural, há casas pequenas e simples de alvenaria, alguns lotes que seriam unitários divididos em dois, para que na mesma porção de terra caibam mais famílias. Onde o território se chama SCIA, um laboratório Sabin acaba de ser inaugurado, em construção grande e vistosa; um edifício alto, de vidro espelhado e garagem grande cercada, é depósito da Cia Toy, uma loja de brinquedos caros que não chegam nas mãos das crianças que moram do outro lado da rua. Uma avenida, que divide dois mundos. O descaramento da desigualdade é incômodo e bastante conflitante para quem mora na cidade.
Encerramos a incursão andando pela principal via comercial da cidade. Nessa rua, as lojas antigas de moradores/as da Estrutural – verdurões e pequenos mercados – se misturam a empreendimentos de outro tipo: butiques de roupas caras, grandes academias, lanchonetes fast-food. Uma mulher dona de uma loja grã-fina disse, em outra ocasião, que sua loja trouxe a “cara de shopping para a Estrutural”. Um prédio grande de três andares e vidros espelhados, dessa vez dentro da cidade, estampa um cartaz anunciando que ali se alugam salas comerciais de 152 m2, que contam com garagem privativa e elevador. Por curiosidade, ligamos para perguntar o preço: a voz do outro lado responde custar R$2.500 o aluguel mensal. Começamos a especular: o valor é fora da realidade da cidade, mas quem faz um investimento como esse sem esperar retorno, ainda que a médio prazo? Boa parte dos/as donos/as de loja naquela avenida não é moradora da cidade. A expulsão da pobreza e negritude de áreas centrais e nobres da cidade não se dá apenas pela arma da polícia. Ela também funciona a partir de outros gatilhos, e esse processo, sem dúvida, está em curso na Estrutural.