No último dia 11, integrantes do Movimento Nossa Brasília e Companhia de Teatro Bisquetes sofreram um ataque homofóbico na cidade Estrutural, onde moram. No dia seguinte, a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) derrubou o veto ao Estatuto da Família – projeto que define o que é família, excluindo das configurações legítimas integrantes da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e pessoas intersexuais (LGBTI).

Qual é a relação entre esses dois eventos? Em artigo, Lucas Miguel, uma das vítimas, relata como foi o ataque, o que sentiu e reflete sobre quais são os mecanismos que legitimam a violência homofóbica.

Eu sou uma pessoa?

Por Lucas Miguel*

Mais um dia comum, me vesti como visto, me comportei exatamente como eu sou, ele também, passamos o dia como todos os outros, nos sentindo seguros, empoderados, seguimos com nosso discurso de que nossos corpos são luta, nossa existência por si é resistência. A noite chega, terminamos nossa jornada diária, trabalho, faculdade, encontro com os amigos… Coisas que todas as pessoas fazem, afinal, somos pessoas, não somos? Como todos os dias, ele me deixa na esquina de casa, ele mora a algumas ruas dali, mas pensa ser mais seguro me deixar, pois meu corpo afeminado, minhas vestes lidas como “gay demais” ou meu cabelo grande, me tornam alvo fácil para algum tipo de violência, que até agora não tinha acontecido. Estamos mais que habituados com a verbalização da homofobia e do machismo derramados sobre nós todos os dias, mas nunca tinha ocorrido nenhuma agressão física, nos sentimos seguros em nossa cidade apesar dos pesares.

Nesse dia em específico não nos abraçamos, apertamos as mãos como dois amigos o fariam, afinal tem muitos homens na rua, não é? Pauladas e pedradas, injúrias e xingamentos voam e ecoam pelo ambiente, estou atordoado, não entendo o que está acontecendo, e no meio da violência escuto nitidamente: VIADO! Tem que morrer mesmo! Coisa do diabo! As palavras ressoam em minha mente, perfuram meu ser como facas apontadas pela sociedade que se enxerga como “pessoas de bem”.

Eu corro o mais rápido que posso, minha casa fica a poucos metros, na hora nem me passa a cabeça pensamentos racionais, o instinto me move, o medo me impulsiona, entro em casa, minha primeira reação é saber se meu companheiro conseguiu chegar bem, temo por ele, temo por nós. Estou escrevendo uma mensagem, contando o ocorrido, rezando para que ele esteja bem, sou surpreendido por uma ligação dele; pelo menos sei que ele está vivo.

Ele conta que após os sete garotos arremessarem pedras e paus em mim, não se contentaram em exercer a força, o medo, o desrespeito e foram atrás dele o apedrejando; mais uma vez o medo impulsiona, o instinto move, ele corre o mais rápido que pode, escutando as risadas e gozações que os garotos fazem por terem conseguido acertar um dos viadinhos.

Desespero, medo, raiva, culpa… São esses os sentimentos que ocupam em meu peito, minha família escuta meu choro e me pergunta o que aconteceu. Ao relatar, falam em chamar a polícia, se esquecem que moramos na Estrutural, se esquecem que nesses casos a polícia pouco pode fazer, e sinceramente quantas vezes a polícia só não nos violentou ainda mais ao pedirmos ajuda? Por outro lado, temo também pelos agressores, só nós sabemos o quanto a polícia amedronta a periferia.

A homofobia é tão violenta que me pego culpando a mim mesmo por ser eu, por viver, por expressar quem sou, é tanta violência que começo a me questionar se eu mereço realmente estar vivo, se eu sou uma pessoa.

Sim! Eu sou uma pessoa, nós somos! Meu corpo mais uma vez foi alvo, minha alma foi destroçada mais uma vez, minha voz foi novamente silenciada e essa violência foi mais uma vez legitimada pelo pastor da igreja que diz que pessoas como eu são pecadoras e que merecem ir para o inferno, legitimada pelas pessoas que assistiram ao ataque e nada fizeram. Essa legitimação se escancara também em forma de lei pelas mãos de políticos conservadores e hipócritas como os da Câmara Legislativa do Distrito Federal que derrubaram o veto ao Estatuto da Família (aquele que exclui relações homoafetivas do conceito de família).

De uma coisa eu tenho certeza, eu, o Fábio, a Taty, o Ariel, a Thayná e todas as pessoas LGBTI da cidade Estrutural, nos conhecemos, nos reconhecemos, nos amamos e respeitamos, cada um com suas particularidades, cada um e cada uma com suas histórias e vivências, não vamos tolerar a homofobia, o racismo, o machismo e nenhuma forma de discriminação! Pensaremos em formas de combater essas violências, por meio da educação e da instrução, fazendo o caminho inverso do opressor, ensinando as pessoas que o amor sempre vence, que o medo não prevalecerá.

Mas sigo dizendo: meu corpo é resiliência, minha voz é arma de denúncia e resistência, meus passos e minhas vestes são a expressão de quem sou! A morte de Dandara dos Santos, Marielle Franco, Lucas Silva ou do aumento de 30% de assassinatos de pessoas LGBTI no Brasil, não vão ser em vão! Nossa luta vai crescer, nossa resistência vai continuar, nosso papel é lembrar a sociedade todos os dias, que suas mãos conservadoras, de família tradicional, de cidadãos de bem estão sujas com o NOSSO sangue, e que nós somos muitos, que não estamos sós, nós existimos e vamos continuar a existir, e vocês vão ter que nos engolir!

LGBTI de periferia presente!

*Lucas Miguel é membro do GT de gênero e sexualidade do Movimento Nossa Brasília e integrante da Cia de Teatro As Bisquetes.

 

 

 

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